quarta-feira, 19 de dezembro de 2018



Suspeita de amianto em talco infantil da Johnson & Johnson preocupa consumidores nos EUA

Há décadas que o cancerígeno, que frequentemente aparece no subsolo perto do talco, vem sendo uma preocupação da J&J




Roni Caryn e Tiffany Hssu, The New York Times 
18 Dezembro 2018 | 03h00 

O memorando era conciso e direto. Um executivo da Johnson's & Johnson's dizia que o principal ingrediente do talco para bebês da empresa, campeão de vendas,  poderia estar potencialmente contaminado por amianto, o perigoso mineral que pode causar câncer. Ele recomendava ao alto escalão , em 1971, que a companhia "elevasse o nível" de controle de qualidade do talco
Dois anos depois, outro executivo levantou a bandeira vermelha, dizendo que a empresa não podia mais seguir afirmando que suas minas de talco eram livres de amianto. O talco, disse ele, às vezes continha materiais que poderiam ser classificados como "fibras de amianto". 

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A gigante farmacêutica Johnson & Johnson foi condenada a pagar US$ 4,69 bilhões a 22 mulheres e suas famílias que alegam que um talco vendido  pela companhia continha amianto e lhes causou câncer
Há décadas que o cancerígeno, que frequentemente aparece no subsolo perto do talco, vem sendo uma preocupação da empresa. Em centenas de páginas de memorando, executivos preocupavam-se com um potencial banimento do talco pelo governo, com a segurança do produto e com uma reação do público ao Johnson's Baby Powder (talco infantil Johnson's), que goza de uma longa reputação de produto saudável e confiável.  
Executivos propuseram novos tipos de testes, ou substituir totalmente o talco, ao mesmo tempo em que tentaram desacreditar pesquisas que sugeriam que o talco da companhia pudesse estar contaminado com amianto. É o que revelam documentos corporativos surgidos durante a discussão jurídica, relatórios governamentais obtidos pelo jornal The New York Times através do Freedom Information Act (lei de acesso à informação) e entrevistas com cientistas e advogados. 
A Johnson' & Johnson's exigiu que o governo impedisse o acesso do público a revelações desfavoráveis. Um executivo acabou obtendo de um funcionário da Food and Drug Administration (FDA) garantias de que essas descobertas só seriam divulgadas "sobre o cadáver" dele, segundo um memorando resumindo o encontro.  
Esses esforços são o ponto crucial de uma nova frente legal numa antiga batalha judicial envolvendo o talco Johnson's infantil, disputa que expõe a companhia a quase 12 mil processos pelos Estados Unidos, sob alegações de que o produto pode causar câncer.  
Neste ano, 22 mulheres com câncer de ovário ganharam uma ação contra a Johnson's & Johnson's argumentando que a empresa sabia da conexão do talco com o amianto. Um tribunal St. Louis, Missouri, mandou pagar às queixosas US$ 4,69 bilhões, uma das maiores indenizações por danos pessoais já pagas no mundo
A empresa perdeu duas outras ações neste ano, na Califórnia e em New Jersey, movidas por pessoas com mesotelioma, um tumor no tecido que envolve pulmões, coração, estômago e outros órgãos e é associado ao amianto.  
A perspectiva de haver amianto envolvido "deixa a defesa da companhia numa posição muito mais difícil", disse Nathan Schachatman, advogado que defende empresas produtoras de amianto. "Cria-se uma indignação muito maior entre os jurados." 
Ações da Johnson's & Johnson's sofreram queda de 10% na sexta-feira em consequência de uma reportagem da agência Reuters sobre preocupações relacionadas ao talco Johnson's para bebês. A J&J está apelando em três casos relacionados a amianto. Ela ganhou em três casos relacionados a mesotelioma, enquanto outros quatro foram considerados nulos. 
A empresa defende a segurança de seu talco infantil afirmando que ele nunca conteve amianto e que as queixas são baseadas em "ciência de lixo". A J&J diz que os advogados dos acusadores "escolheram memorandos a dedo" e que, na verdade, os memorandos mostram o foco da empresa em segurança.  
O talco da Johnson's & Johnson's vem sendo testado por cientistas de muitos órgãos desde o início dos anos 1970 e os testes prosseguem até hoje, disse Peter Bicks, sócio da banca de advocacia Orrick, uma das que representam a J&J nos processos. "Nenhum desses testes recorrentes feitos nos últimos 50 anos detectou a presença de amianto."
Krystal Kim, de Filadélfia, de 53 anos e mãe de dois filhos, tinha 10 anos quando sua mãe a mandou usar talco infantil Johnson's para "ficar sempre fresquinha e cheirando a limpeza".  Ela continuou a usar durante décadas, no rosto, entre as pernas e mesmo nos lençóis. Muitas mulheres usam talco infantil como produto de higiene feminina, aplicando-o no corpo e, consequentemente,  respirando-o quando ele se mistura com o ar em volta.  
Cinco anos atrás, Kim soube que estava com um agressivo câncer de ovário, que foi tratado com quimioterapia. Partes de seu intestino e cólon foram removidas. Kim, uma das queixosas no caso do Missouri, quer que o talco infantil Johnson's seja retirado das prateleiras ou, no mínimo, que traga advertências na etiqueta.  
Antes do veredicto do Missouri, a J&J vinha conseguindo anular a maioria das acusações que conectavam o talco ao câncer. Ela alegava que as pesquisas que lastreavam as acusações eram falhas, e exibia estudos que provavam o contrário. 
Dos seis casos que a J&J enfrentou até agora sobre o tema, três decisões foram derrubadas por apelações, uma outra está sob apelação e numa outra ainda a queixosa ganhou na Justiça, mas não teve direito a indenização. Um veredicto, num processo de US$ 110 milhões, foi suspenso pelo juiz enquanto a empresa está apelando.  
O amianto é um cancerígeno inquestionável. Mesmo pequenos traços de sua presença são considerados perigosos. Suas fibras agudas penetram profundamente nos tecidos e podem levar a câncer do pulmão, laringe e ovário, mesmo transcorridas décadas (além de causarem mesotelioma).  
Muitos testes de laboratório, alguns realizados nos últimos anos a pedido de advogados de queixosas, constataram evidências de amianto no talco. A ligação entre o amianto e o câncer de ovário foi reportada pela primeira vez em 1958. A Agência Internacional de Pesquisas sobre o Câncer confirmou em 2011 que o mineral é uma causa de câncer.  
"Não há nenhuma ambiguidade quanto a isso", disse Mark Lanier, advogado que representou as mulheres no caso do Missouri. Lanier já conseguiu anteriormente que grandes indústrias indenizassem operários  expostos ao amianto em seu trabalho. "O amianto causa câncer de ovário", acrescentou ele. "Essa não é uma discussão sem vencedor."

"Mães Apavoradas".
O amianto já foi onipresente no isolamento de residências, estaleiros, fábricas e mesmo peças de automóvel. É barato, resistente e fácil de extrair. Por volta dos anos 1970, passou a ser considerado indiscutivelmente perigoso. À medida que grupos de consumidores passaram a dar o alerta, cientistas ambientais começaram a testar materiais de construção e produtos domésticos que pudessem conter amianto.      
Dois minerologistas, Arthur Langer, do Mount Sinai Medical Center,e Fred Pooley, da University College Cardiff, do País de Gales, realizaram um estudo sobre a incidência de amianto em talcos  vendidos dos dois lados do Atlântico. Pooley pretendia apresentar as descobertas da dupla numa conferência sobre saúde ocupacional na Grã-Bretanha, em setembro de 1975.  
Mas Pooley também havia sido consultor da indústria de cosméticos. Quando Langer revelou ter encontrado traços de minerais que poderiam ser amianto no talco infantil Johnson's, Polley alertou executivos da J&J. Estes qualificaram Langer em memorandos internos da empresa como "desonesto" e afirmaram que seus dados eram "controversos". Pooley cancelou sua apresentação e a empresa o pressionou a retirar o relatório do material da conferência. Pooley não foi encontrado para comentários.  
Langer prosseguiu com a pesquisa sem Pooley. Em 1976, ele e colegas do Mount Sinai disseram a repórteres que haviam detectado amianto em vários talcos à venda, embora eles tenham dito explicitamente que não o haviam encontrado em produtos da J&J. O resultado foi posteriormente publicado numa revista.  
A empresa prosseguiu na ofensiva. Dias depois, executivos se encontram com Langer e dois de seus colegas e disseram-lhes que não deveriam "apavorar desnecessariamente as mães", segundo memorando da companhia descrevendo a reunião.  
Thomas C. Chalmers, presidente do Mount Sinai, divulgou declaração à imprensa para corrigir "impressões erradas que as reportagens pudessem ter gerado" sobre o talco. Ele disse que os testes sobre amianto haviam sido feitos com talcos antigos , que os novos eram seguros e que os pediatras do Mount Sinai aprovavam o uso do talco em bebês.  
Um dos colegas de Langer do Mount Sinai contestou a declaração de Chalmers numa entrevista de 1976 ao jornal Washington Post, dizendo que a equipe havia testado talcos antigos e novos. Numa recente entrevista, Langer disse ao NYT que Chalmers "falou em seu nome e no e sua instituição, não em nome do grupo de pesquisa". Ele reiterou que sua equipe detectou amianto no talco Johnson's Baby Powder. "Sustento isso hoje", afirmou. 
"Sobre meu Cadáver".
Com a crescente preocupação com o amianto, a FDA estava sob pressão para regulamentar o talco, que também é usado em máscaras de maquiagem, batom e pó facial. No início dos anos 1970, a agência encarregou Seymour Lewin, um renomado químico da Universidade de Nova York, de testar talcos.  
Lewin encontrou amianto em mais da metade das amostras de Johnson's Baby Powder que testou. Um grupo comercial da indústria cosmética recebeu uma cópia confidencial do relatório da FDA. O grupo, que compartilhou o relatório com a J&J, ameaçou ir à Justiça para impedir sua divulgação. A J&J pediu à FDA que mantivesse as descoberta sob "estrita confidência", segundo memorando que resumiu a reunião. "A divulgação de tal informação inverídica vai criar uma indesejada onda alarmista", disseram executivos  da empresa à FDA.  
Um funcionário da agência disse à J&J que o relatório só seria divulgado "sobre o cadáver" dele, segundo memorando corporativo interno sobre a conversação. A J&J pediu a Walter McCrone, o cientista que usualmente testa seu talco, que visitasse Lewin e examinasse seus slides. A empresa também reuniu depoimentos e dados de outros cientistas para contestar os resultados de Lewin.  
O relatório final de Lewin foi diferente do que ele havia revelado antes. Ele inicialmente dizia que as amostras da J&J contaminadas continham 2% ou mais de amianto. Na versão final que enviou à FDA, porém, ele disse que na maioria das amostras não havia amianto e que dois resultados de teste mostraram-se inconclusivos. 
No fim, o governo recuou de um projeto para regulamentar o amianto no talco. O grupo da indústria de cosméticos adotou um padrão de "tolerância zero" para amianto em talco, mas a adesão é voluntária. 
"A FDA leva muito a sério a possível presença de amianto em cosméticos e utiliza vários meios para monitorar a segurança dos cosméticos em geral, incluindo a realização de pesquisas para garantir que os cosméticos à disposição dos consumidores americanos sejam seguros", disse a agência, em declaração. 
Ela acrescentou que os mais recentes testes com cosméticos, em 2009 e 2010, não constataram a presença de amianto, mas ressalvou que os resultados são "limitados", uma vez que poucos produtos e amostras de talco bruto foram testados. 
"A FDA continua a investigar e monitorar informações sobre contaminação de amianto em certos produtos cosméticos e divulgará informações adicionais tão logo elas estejam disponíveis", disse a agência.
Lewin morreu há muitos anos. Mas Aviam Elkies, que era bolsista financiado pela J&J para trabalhar no laboratório de Lewein em 1972, analisando talco de minas que supriam a empresa, disse que ele e Lewein detectaram amianto em pelo menos metade das amostras que testaram. "O amianto apareceu em amostras retiradas aleatoriamente das mesmas minas", afirmou Elkies numa entrevista de Israel, onde vive. "Apareceu em diferentes concentrações, sem padrão." 
Ele disse que a J&J encerrou o projeto após saber dos resultados e retirou o financiamento de sua bolsa de estudos. Eikies não terminou a graduação e mudou-se para Israel,onde dá aulas de química no ensino médio e no superior. O advogado Peter Bicks disse que a J&J não tem evidências de que Elkies tenha ganho uma bolsa da empresa e que os testes de talco a que ele se referiu foram feitos com talco de suas minas no Canadá e Nova York e que esses testes nunca foram usados.  
Os esforços da J&J para minimizar o debate sobre seu talco infantil prosseguem. A empresa tenta fazer com que documentos usados nos tribunais sejam selados, contratou advogados conhecidos por seu trabalho na administração de crises e criou um site para exaltar a segurança de seu talco.  
O site, que começou em 2016, inicialmente mencionou o amianto uma vez. Agora menciona com frequência o produto em seções sobre segurança e mesotelioma. "Quando a ciência é falsa e imprecisa, precisa ser corrigida", disse Bicks.  
Barreiras Legais.
Darlene Cocker desenvolveu mesotelioma em 1997. Aos 52 anos, moradora em Beaumont,Texas, ela nunca trabalhou em estaleiro, construção ou mineração, como muito dos portadores da doença. Foi, porém, uma antiga usuária de talco infantil Johnson's. 
Quando ela processou a empresa, o processo não foi longe. Seus advogados tentaram conseguir informações da J&J sobre amianto. A resposta da empresa foi de que não havia nada de relevante.  
Quando eles pediram nomes de laboratórios que testaram o talco Johnson's sobre amianto, e os resultados dos testes, a J&J disse que as perguntas eram "vagas". Solicitações de documentos não foram atendidas porque, segundo a empresa, "o material é imenso e ininteligível". A empresa chamou a busca de "uma pescaria". Os advogados de Cocker retiraram a queixa. Ela morreu em 2009 de mesotelioma.  
Lanier, o advogado do caso do Missouri, disse que pretende reexaminar o processo de Cocker agora que documentos obtidos em casos recentes mostram que a empresa tem informações a compartilhar. A recente onda de casos relacionados ao amianto,que levou à descoberta de documentos internos da J&J, está provocando uma ampla reavaliação por parte de advogados de queixosos.  
Após o julgamento do Missouri, Michael J. Miller, advogado da Virgínia envolvido no litígio do talco, disse que mais advogados de queixosas estão avaliando se o o câncer de ovário de suas clientes tem ligação com o amianto. "Sabíamos há anos que havia algo sobre o talco causar câncer de ovário, e havia rumores sobre amianto, mas estávamos emparedados pela J&J com relação aos documentos de que necessitávamos", disse ele. "O julgamento de St. Louis foi muito elucidador,muito informativo. Estamos entusiasmados." 
O escritório de Miller representa 900 queixosas que culpam o longo uso de Johnson' Baby Powder por seus cânceres de ovário. Ele espera ter um primeiro julgamento no início de 2020. "Nem precisávamos saber se havia amianto envolvido para ganhar a causa, mas agora que sabemos tudo ficou mais fácil", disse Miller. "Estamos ansiosos para ir ao tribunal". / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ