AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.937 SÃO PAULO
VOTO-VISTA
O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI:
Em 23/11/16,
teve início o julgamento da ADPF nº 109 e foi retomado o julgamento das ADI nº
3.356, 3.357 e 3.937, todas ações ajuizadas pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Indústria, em que se discute, respectivamente, a
constitucionalidade da Lei nº 13.113/2001 do Município de São Paulo e das leis
do Estado de Pernambuco (Lei nº 12.589/2004), do Rio Grande do Sul (Lei nº
11.643/2001) e do Estado de São Paulo (Lei nº 12.684/2007), que vedam a
utilização do amianto nas atividades nelas definidas.
Na ocasião, pedi vista dos autos para melhor analisar a matéria neles tratada.
I.
A JURISPRUDÊNCIA DA CORTE
A discussão
acerca da constitucionalidade ou não da proibição, pelos estados, da produção e
da comercialização de produtos à base de amianto não é nova nesta Corte.
No julgamento
das ADI nº 2.656 e 2.396, ocorrido em 2003, este Tribunal declarou a
inconstitucionalidade de leis, respectivamente, dos Estados de São Paulo e de
Mato Grosso do Sul que proibiam a produção e a comercialização de produtos à
base de amianto com fundamento em ofensa à competência privativa da União para
dispor sobre comércio exterior, minas e recursos minerais (art. 22, inciso VIII
e XII) e para editar normas gerais sobre produção e consumo (art. 24, V),
proteção do meio ambiente e controle da poluição (art. 24, VI) e proteção e
defesa da saúde (art. 24, XII) (ADI 2.656, Rel. Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJ de 1/8/03; ADI 2.396, Rel. Min.
Ellen Gracie, Tribunal Pleno, DJ de
1º/8/03).
Em ambos os
casos, ressaltou-se o fato de que as normas estaduais em questão iam de
encontro ao que dispõe a Lei federal nº 9.055, de 1º de junho de 1995, que
permite a extração, a industrialização, a utilização e a comercialização do
asbesto/amianto da
variedade crisotila (asbesto
branco), sendo o mencionado diploma
a norma geral federal relativa ao tema. Tal constatação vinha como reforço ao
entendimento de que os estados invadiram a competência da União para dispor
sobre normas gerais de produção e consumo de amianto.
Após esses
julgamentos, o debate foi renovado perante o Tribunal, com o ajuizamento de
novas ações de controle concentrado sobre o assunto.
Em 2008, a
questão retornou ao plenário da Corte na análise da medida cautelar na ADI nº
3.937 contra nova lei do Estado de São Paulo (Lei nº 12.684/07) proibindo o
uso, no referido estado, de produtos, materiais ou artefatos que contenham
quaisquer tipos de amianto ou asbesto.
No referido julgamento, o Tribunal, por maioria, não aplicou o
entendimento tradicional adotado em 2003 e indeferiu a medida cautelar, fazendo prevalecer a lei estadual, que
confere proteção mais adequada à saúde e
ao meio ambiente.
São estas ações
(ADI nºs 3.937, 3356 e 3357 e ADPF nº 109) que estão, agora, em julgamento
conjunto.
II.
ANÁLISE
SOB A PERSPECTIVA DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA
Em decorrência
das competências compartilhadas entre os entes federativos, é inevitável a
ocorrência de eventuais conflitos na atuação governamental e legislativa desses
entes.
Nesses casos,
compete à Suprema Corte, como árbitro da
Federação, definir com precisão as competências nas disputas concretas,
explicitando critérios coerentes e estáveis de identificação das competências
constitucionais.
Já defendia Hans
Kelsen que era exatamente nos estados federais que a jurisdição constitucional
adquiria a mais considerável importância, pois neles se faz necessária uma
instância objetiva que decida os conflitos entre os entes federativos de modo pacífico,
como problemas de ordem
jurídica, especialmente no que tange às
competências constitucionalmente distribuídas.
Essa
delimitação, chamada de repartição de competências, é ponto central e
indispensável do federalismo, visto se tratar de pressuposto da autonomia dos
entes federativos.
No caso brasileiro, a Constituição de
1988 deu ênfase à concepção de um federalismo
cooperativo a partir de instrumentos de atuação conjunta dos entes federados, especialmente como forma de
superação das desigualdades regionais.
Como adverte Gilberto Bercovici:
“O
federalismo brasileiro, como sistematizado pela CF/88, impõe que os problemas
regionais não sejam tratados separadamente do contexto nacional. Isso não
significa desconhecer a especifidade regional, mas sim que esta especificidade
regional deve ser entendida em sua inserção no todo nacional. (CANO,
1994, p. 317, CARVALHO, 1979, p. 34 4
HOLTHUS, 1996, p. 33)” (O federalismo no Brasil e os
limites da competência legislativa e administrativa: memórias e pesquisas. Revista Jurídica, v. 10, n. 90, Brasília: Presidência da
República, abr./maio, 2008. p. 8).
É esse equilíbrio que se deve buscar na
Federação brasileira. Um ponto de estabilidade entre centralização e
descentralização, entre unidade e diversidade, entre a realidade nacional e a
realidade regional e local.
Ainda nas palavras do citado professor:
“(...) A cooperação se faz necessária
para que as crescentes necessidades de homogeneização não desemboquem na
centralização. A virtude da cooperação é a de buscar resultados unitários e
uniformizadores sem esvaziar os poderes e competências dos entes federados em
relação à União, mas ressaltando a sua complementaridade. (HESSE, p. 19-21 e
ROVIRA, 1986, p. 24-25)”. (op. cit.,
p. 7).
Nos casos dos autos, há normas
estaduais e municipal que versam sobre produção
e consumo (art. 24, V, CF/88), proteção do meio ambiente (art. 24, VI) e proteção e defesa da saúde (art. 24,
XII, CF/88). Dessa forma, compete concorrentemente à União a edição de normas gerais e aos estados suplementar a legislação federal no que
couber (art. 24, §§ 1º e 2º, CF/88). Somente na hipótese de inexistência de lei
federal é que os estados exercerão a competência
legislativa plena (art. 24, § 3º, CF/88). Sobrevindo lei federal dispondo
sobre normas gerais, a lei estadual terá sua eficácia suspensa naquilo que contrariar a federal (art. 24, § 4º, CF/88).
De igual modo, aos municípios compete
legislar sobre assuntos de interesse
local e suplementar a legislação
federal ou estadual no que couber (art. 30, I e II, CF/88).
A Constituição
Federal, todavia, não conceituou normas
gerais, embora tal conceituação seja de primordial importância para a
delimitação da competência concorrente entre os entes federados. A respeito do
tema, Fernanda Dias Menezes de Almeida afirma que há diversidade de
conceituações do que sejam normas gerais,
algumas “construídas a partir da tentativa ora de identificar os elementos
constitutivos das normas gerais, ora de caracterizá-las negativamente, dizendo
o que elas não são ou não podem conter” (ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição
de 1988. São Paulo: Atlas, 2000. p. 147).
Dentre os diversos conceitos
encontrados na doutrina, merece destaque o que ensina o saudoso professor Diogo
de Figueiredo Moreira Neto, para quem o estabelecimento
de diretrizes nacionais cabe à norma geral, restando aos estados-membros
editar normas particularizantes para
aplicá-las em seus respectivos âmbitos políticos. Confira-se, a propósito, a
lição do autor:
“Normas gerais são declarações
principiológicas que cabem à União editar, no uso de sua competência
concorrente limitada, restrita ao
estabelecimento de diretrizes
nacionais
sobre certos assuntos, que deverão ser respeitadas pelos Estados-Membros na feitura de suas
legislações, através de normas específicas e particularizantes que as
detalharão, de modo que possam ser aplicadas, direta e imediatamente, às
relações e situações concretas a que se destinam, em seus respectivos âmbitos
políticos” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Competência concorrente
limitada. O problema da conceituação das normas gerais. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 25, nº 100,
out./dez. 1988. p. 159, grifos nossos).
Acrescenta o professor que as normas gerais caracterizam-se por serem
nacionais, sobretudo em uma federação, pois têm por finalidade “a
preservação daquilo que a Constituição quer que seja nacional”, ou seja,
“seu fim é a uniformização do essencial
sem cercear o acidental, peculiar das unidades federadas”, o que “se
justifica na medida em que a excessiva
diversificação normativa prejudique o conjunto do país” (p. 159/160, grifos nossos).
Na sempre clássica obra de Raul
Machado Horta, no âmbito da competência concorrente, cabe à União estabelecer
normas gerais, que devem ser leis quadros,
molduras legislativas, enquanto cabe
aos estados complementá-las mediante o preenchimento dos claros deixados pelas
leis de normas gerais, de forma a afeiçoá-las às peculiaridades locais e
aperfeiçoar suas finalidades (HORTA, Raul
Machado. Estudos de Direito
Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey,
1995. p. 419, grifos nossos).
Nesse sentido, também leciona Tércio Sampaio Ferraz:
“Ora, o federalismo cooperativo vê na necessidade de uniformização de certos
interesses um ponto básico da colaboração. Assim, toda matéria que extravase o interesse circunscrito de uma unidade (estadual,
em face da União; municipal, em face do Estado) ou porque é comum (todos têm o
mesmo interesse) ou porque envolve tipologias, conceituações que, se
particularizadas num âmbito autônomo,
engendrariam
conflitos ou dificuldades no intercâmbio nacional, constitui matéria de norma geral”
(FERRAZ, Tércio Sampaio. Normas gerais e competência concorrente – uma exegese
do art. 24 da Constituição Federal. Revista
Trimestral de Direito Público, nº
7.
São Paulo: Malheiros, 1994, p. 19, grifos nossos).
Nesse sentido, conforme salientado no
§ 2º do art. 24 da Carta Republicana, “[a] competência da União para legislar
sobre normas gerais não exclui a
competência suplementar dos Estados” (grifos nossos).
Ao tempo em que
dispõe sobre a competência legislativa
concorrente entre a União e os estados-membros, prevê o art. 24 da Carta
de 1988, em seus parágrafos, duas situações em que compete aos estados- membros
legislar: (a) quando a União não o faz e, assim, o ente federado, ao
regulamentar uma das matérias do art. 24, não encontra limites em norma federal
que não existe; e (b) quando a União edita norma geral sobre o tema, a ser
observada em todo território nacional, cabendo ao estado a respectiva
suplementação, a fim de adequar as prescrições a suas particularidades locais.
Por sua vez, a Constituição
de 1988, ao repartir as competências
entre os entes federativos, firmou-se em conformidade com a predominância do interesse. Foram
atribuídas à União as matérias e circunstâncias de interesse geral, aos
estados-membros, as de interesse regional, e aos municípios, as de interesse local.
Assim
sendo, é imperativo que a
competência concorrente exercida pela União englobe os interesses nacionais,
que não podem ser limitados às fronteiras dos estados-membros.
Aliás, numa
federação, é consequência lógica que determinadas matérias sejam uniformemente
tratadas pelo ente central, garantindo homogeneidade a certas disposições,
notadamente com a edição de normas gerais.
Não estou aqui a
defender que o entes estaduais e municipais têm um papel secundário em relação
à União, mas a imperatividade de se observarem as regras constitucionais de
repartição de competência legislativa concorrente.
No modelo vertical de repartição de competências (corporificada na
competência concorrente), há atividade
conjunta e complementar dos entes, sem implicar hierarquia entre atos
normativos de cada ente federado, mas campos
de atribuição distintos, predefinidos constitucionalmente.
Não há de se
olvidar a relevância de se buscar uma maior descentralização legislativa em favor dos estados e municípios.
Deve-se, de fato, assegurar-lhes espaço para a criação e a experimentação
legislativa. Todavia, deve-se observar, para tanto, as diretrizes
traçadas no texto constitucional quanto à distribuição de competência no
condomínio legislativo da Federação.
A excessiva
centralização de competências da União deve ser combatida quando essa ultrapassa seu poder legislativo,
adentrando na seara das competências dos demais entes federativos, em
particularidades que deveriam ser tratadas pelos entes estaduais ou municipais.
Foi o que fez
esta Corte na medida cautelar da ADI nº 927, quando o Tribunal deu
interpretação conforme a dispositivos da Lei nº 8.666/93 (norma geral federal
sobre licitações) para esclarecer que somente teriam aplicação no âmbito da
União, por entender que constituíam limitação ilegítima à competência
legislativa estadual e municipal (Rel. Min. Carlos Velloso, DJe de 11/11/94).
A competência federal para editar normas gerais não permite que o ente
central esgote toda a disciplina normativa, sem deixar competência
substancial para o estado-membro. Afinal,
conforme está expresso no texto constitucional, sua competência restringe-se à
edição de normas gerais.
Se, por um lado, a norma geral não
pode impedir o exercício da competência estadual de suplementar as matérias
arroladas no art. 24, por outro, não se pode admitir que a legislação
estadual possa adentrar a competência da União e disciplinar a matéria de forma
contrária à norma geral federal, desvirtuando o mínimo de unidade normativa almejado pela Constituição Federal.
Conforme bem
explicitado pelo Ministro Celso de
Mello no
julgamento da ADI nº 2.903/PB (DJe 19/9/08),
“[s]e é certo, de um lado, que,
nas hipóteses referidas no art. 24 da Constituição, a União Federal não dispõe
de poderes ilimitados que lhe permitam transpor o âmbito das normas gerais,
para, assim, invadir, de modo inconstitucional, a esfera de competência
normativa dos Estados-membros, não é
menos exato, de outro, que o Estado-membro, em existindo normas gerais
veiculadas em leis nacionais (...) não
pode ultrapassar os limites da competência meramente suplementar, pois, se tal
ocorrer, o diploma legislativo estadual incidirá, diretamente, no vício da
inconstitucionalidade. A edição, por determinado Estado- membro, de lei
que contrarie, frontalmente, critérios mínimos legitimamente veiculados, em
sede de normas gerais, pela União Federal ofende, de modo direto, o texto da
Carta Política. (…) Os
Estados-membros e o Distrito Federal não podem, mediante legislação autônoma,
agindo ‘ultra vires’, transgredir a legislação fundamental ou de princípios que
a União Federal fez editar no desempenho legítimo de sua competência
constitucional, e de cujo exercício deriva o poder de fixar, validamente,
diretrizes e bases gerais pertinentes a determinada matéria (…).”
A inobservância
dos limites constitucionais impostos ao exercício da competência concorrente,
ou seja, a invasão do campo de atuação alheio, implica a inconstitucionalidade
formal da lei, seja ela federal, estadual ou municipal.
Por essa razão, peço vênia aos eminentes Ministros
que assim entendem, mas não vejo espaço constitucional para a tese de que, em matéria
de competência legislativa concorrente – inclusive em relação à proteção do
consumidor, da saúde e do meio ambiente -, as normas estaduais e municipais
devam prevalecer sobre a norma geral federal
caso elas sejam mais protetivas e
estejam em oposição à disciplina federal.
Não nos parece que esta conclusão decorra do disposto nos arts. 24 e
30 da Constituição Federal. A Constituição de 1988 estabeleceu uma competência concorrente não cumulativa,
na qual há expressa delimitação dos
modos de atuação de cada ente federativo, os quais não se sobrepõem.
Segundo os
referidos mandamentos constitucionais, compete à União editar as normas gerais,
não cabendo aos estados contrariar ou substituir o que definido em norma geral,
mas sim suplementar. Tanto isso é
verdade que o § 4º do art. 24 da Constituição estabelece que “a superveniência
de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário”.
Como se vê, o
texto constitucional não admite antinomias
entre a norma geral e a norma suplementar, pois a contrariedade direta
entre as legislações implica a ocorrência de invasão de competência. A norma
estadual ou municipal é inválida não pelo fato de contrariar materialmente a
lei nacional, mas por, ao assim proceder, atuar fora de sua competência
constitucional de suplementar (complementar) as linhas gerais definidas pela
União.
Caso a
Constituição desejasse permitir aos entes federados editar legislação mais
protetiva em detrimento da competência da União, teria feito expressamente a
ressalva, o que, a toda evidência, não ocorreu.
É a Constituição Federal quem dá vida e
existência à Federação. Embora
seja possível traçar linhas teóricas de federalismo abstratamente considerado,
é o texto constitucional de cada país que define suas características reais e o
modelo de repartição das competências. Na clássica lição de Raul Machado Horta,
“há uma relação de causalidade entre Constituição Federal e Estado Federal” (Direito constitucional. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 303).
Daí por que, a
meu juízo, há incompetência dos estados e dos municípios para disciplinar
matérias em contrariedade ao que foi previsto pela União, seja em que sentido for. Não se trata de analisar qual
legislação é mais protetiva, mas quem tem competência legislativa para tanto.
A rigor, se
todos os estados
da federação legislassem
proibindo
determinada prática autorizada pela
União, sob os auspícios de ser mais restritiva e protetiva do meio ambiente e
da saúde pública, haveria um completo
esvaziamento da norma geral federal. Em outras palavras, a edição das
legislações estaduais tornaria letra morta a lei federal, em flagrante violação
do § 1º do art. 24 da Constituição de 1988.
Tratando-se de competência legislativa
concorrente, as normas
nacionais, regionais e locais devem conviver em harmonia dentro do mesmo
território. Essa
é uma importante diretriz para o intérprete na análise de conflitos
legislativos em matéria de competência
concorrente.
Isso não quer dizer que as normas suplementares não possam ser mais
restritivas que as normas gerais federais. Os estados podem ampliar a proteção, estabelecendo novas restrições e condições ao exercício da atividade, bem como regras
de segurança e fiscalização mais exigentes, desde que não sejam incompatíveis
com a norma geral. Mas os estados não têm competência legislativa para
proibir atividade expressamente admitida na lei geral.
É nesse sentido
a jurisprudência desta Suprema Corte, a qual corroboro e entendo como a mais
correta e a que traz segurança jurídica às regras de fixação de competência.
Foi o caso, por
exemplo, das leis estaduais do Estado do Paraná que pretenderam proibir o
plantio e a comercialização de substâncias contendo organismos geneticamente
modificados em seu território. Como a matéria era regulada pela Lei Federal nº
11.105/05 (Lei da Biossegurança), que estabeleceu normas de segurança e
mecanismos de fiscalização das atividades envolvendo tais organismos, as leis
estaduais que visavam coibir tais práticas foram declaradas inconstitucionais
pelo STF (ADI nºs 3.035/PR e 3.645/PR).
Verifica-se, nos
referidos julgados, que não se permitiu que a legislação estadual, embora mais
restritiva em favor do meio ambiente e da saúde, afrontasse as respectivas
normas federais reguladoras da matéria.
No presente caso, a Lei
nº 9.055, em seu art. 1º, proibiu a extração, a
produção, a
industrialização, a utilização e a comercialização de todos os tipos de
amianto, com exceção da crisotila, vedando, quanto a essa espécie, apenas a
pulverização e a venda a granel de fibras em
pó.
Na
sequência, em seu art. 2º, a lei
autorizou a extração, a industrialização, a utilização e a comercialização do
asbesto/amianto da variedade crisotila (asbesto branco) na forma definida na
lei.
Assim, se a lei federal admite, de modo restrito, o uso do amianto, em
tese, a lei estadual ou municipal não poderia proibi-lo totalmente, pois,
desse modo, atuaria de forma contrária à prescrição da norma geral federal.
Nesse caso, não temos norma suplementar, mas norma contrária/substitutiva à lei
geral, em detrimento da competência legislativa da União.
Voltando ao vetor interpretativo de que
as normas gerais suplementares devem conviver
em harmonia dentro do mesmo território, no caso, a norma supostamente suplementar acaba por anular in totum, naquela unidade da federação, a aplicação da lei
nacional.
No entanto, pelos fundamentos que
serão expostos a seguir, entendo que o art. 2º da Lei federal nº 9.055/1995
passou por um processo de inconstitucionalização
e, no momento atual, não mais se compatibiliza com a Constituição
de 1988, razão pela qual os estados
passaram a ter competência legislativa plena sobre a matéria até que sobrevenha
eventual nova legislação federal, nos termos do art. 24, §§ 3º e 4º, da
CF/88.
Embora a Lei
federal nº 9.055/95 não seja impugnada nestas ações - somente na ADI nº 4.066 (a
qual estou impedido de julgar por ter atuado nela como Advogado-Geral da União)
-, a causa de pedir nas ações de controle concentrado é aberta e “o STF, no
exercício da competência geral de fiscalizar a compatibilidade formal e
material de qualquer ato normativo com a Constituição, pode declarar a
inconstitucionalidade, incidentalmente, de normas tidas como fundamento da
decisão” (Rcl 4374/PE, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 4/9/13).
Até porque, sob
os fundamentos aqui
apresentados, a análise da
constitucionalidade da lei federal
– como chamou atenção o eminente Professor Ministro Eros Grau no julgamento da medida cautelar da ADI nº 3.937/SP - é
questão prejudicial ao debate quanto à constitucionalidade das leis estaduais e
municipal em questão, não sendo dado à Corte se furtar de se pronunciar sobre
uma questão de inconstitucionalidade que surge incidenter tantum.
Lembro que já o
fez a Corte na ADI 4.029, de relatoria do Ministro Luiz Fux: julgou improcedente a ação que questionava a
constitucionalidade da Lei federal nº 11.516/07, que criou o Instituto Chico Mendes, mas declarou incidentalmente a
inconstitucionalidade de dispositivos da Resolução nº 1 de 2002 do Congresso
Nacional (DJe de 27/6/12).
Passo então ao próximo ponto de meu voto.
III. O ATUAL ESTÁGIO
DO DEBATE PÚBLICO E CIENTÍFICO
ACERCA DO AMIANTO CRISOTILA (ASBESTO BRANCO) E O PROCESSO DE
INCONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ART. 2º DA
LEI FEDERAL Nº 9.055/1995
Na doutrina
constitucional, reconhece-se o fenômeno pelo qual uma lei antes reconhecida
como constitucional vem a ser considerada incompatível com a Constituição após
determinado período de vigência. Esse fenômeno pode ocorrer, basicamente, de
duas formas: em razão de mudança no
parâmetro de controle, decorrente de alteração formal do texto
constitucional ou do sentido da norma constitucional (no último caso, tem-se a
chamada mutação constitucional); e por
força de alterações nas relações fáticas subjacentes à norma jurídica.
Sabe-se que a
esfera dos fatos se comunica com a esfera do direito de diversas maneiras.
Nesse sentido, a interpretação das normas jurídicas sempre é um processo de
articulação entre texto e realidade fática. Do mesmo modo, a esfera dos fatos é
determinante na compreensão que temos acerca da adequação de determinada norma
aos princípios e regras constitucionais.
A jurisdição
constitucional deve ser exercida com prudência
e sensibilidade para esse
importante aspecto da interpretação constitucional. É essa compreensão que
embasa, por exemplo, o emprego da técnica do apelo ao legislador em virtude de
mudança nas relações jurídicas ou fáticas, a respeito da qual leciona o
eminente Ministro Gilmar Mendes na seara doutrinária, a partir da análise da
jurisprudência da Corte Constitucional Alemã. Dentre as decisões citadas pelo
eminente Ministro, vale mencionar o
caso da divisão dos distritos eleitorais, clássico exemplo de processo de inconstitucionalização na
jurisprudência alemã, relatado nos seguintes
termos:
“22. A decisão do
Bundesverfassungsgericht de 22 de maio
de 1963 revela exemplo clássico do
processo de inconstitucionalização (Verfassungswidrigwerden) em virtude de uma mudança nas relações
fáticas. Ressaltou-se, nesse acórdão, que, em virtude da significativa alteração na estrutura demográfica das diferentes unidades
federadas, a divisão dos distritos eleitorais, realizada em 1949 e
preservada nas sucessivas leis eleitorais, não mais atendia às exigências
demandadas do princípio de igualdade eleitoral (Lei Fundamental, art. 38). O Tribunal absteve-se, porém, de pronunciar
a inconstitucionalidade sob a alegação de que tal situação não podia ser
constatada na data da promulgação da lei
(setembro de 1961). O Bundesverfassungsgericht logrou infirmar, assim, a ofensa
ao art. 38 da Lei Fundamental. Conclamou-se, porém, o legislador ‘a empreender
as medidas necessárias à modificação dos distritos eleitorais, com a redução da
discrepância existente para patamares toleráveis’.
23. Essa exortação do Tribunal foi
atendida com a promulgação da Lei de 14 de fevereiro de 1964 (Gesetz zur
Änderung des Bundeswahlgesetzes)” (O
Apelo ao Legislador – Appellentscheidung – na Práxis da Corte Constitucional
Alemã. Revista de informação legislativa : v. 29, n. 114, abr./jun. 1992).
O fenômeno do processo de inconstitucionalização não
é estranho à práxis deste Supremo Tribunal Federal. Vale mencionar o RE nº
135.328, de Relatoria do Ministro Marco
Aurélio, em que foi consignado que, enquanto a Defensoria Pública não fosse
devidamente organizada, o art. 68 do Código de Processo Penal seria considerado
ainda constitucional, permanecendo o Ministério Público ainda legitimado para a
ação de ressarcimento nele prevista (Tribunal Pleno, DJ de 20/4/01).
Mais
recentemente, no julgamento da Rcl 4374/PE, a respeito do benefício
assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente, o Tribunal, por
maioria, declarou a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade,
do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993, em razão da “ocorrência do processo de
inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas,
econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos
patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros
benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro)” (DJe 4/9/13).
Outrossim,
conforme se observa a partir de Marcelo Borges de Mattos Medina, toda
legislação é editada tendo-se em conta determinados prognósticos, que podem vir
ou não a ser confirmados após um
considerável período de vigência da norma. Frustradas as expectativas em relação ao cumprimento desses
prognósticos, e atestada sua inaptidão para colaborar com a concretização dos
valores constitucionais, cabe reavaliar sua validade. Nas palavras do autor
mencionado:
“Acontece que, às vezes, mesmo os
melhores prognósticos legislativos, em face dos quais determinado estatuto, de
início constitucional, tenha sido elaborado, acabam por ser infirmados em
virtude da evolução da realidade. E, assim, tempos depois da edição da lei,
cumprirá renovar a apreciação dos fatos da vida, a fim de se verificar a
validade da medida no contexto social então presente. (…) justificar-se-á o
reexame pela permanente necessidade de tornar ótima a efetividade das normas da
Constituição,
afastando-se, no plano
infraconstitucional, quaisquer diplomas que obstem a
plena realização desse grave desiderato”(Constituição
e Realidade: a influência das transformações sociais na jurisdição constitucional.
Rio de Janeiro: Renovar, 2011. p. 47).
Tendo
em vista tais pressupostos teóricos, entendo, no caso, que a Lei nº 9.055/1995 passou por um processo de
inconstitucionalização, em razão da alteração no substrato fático do presente
caso. Isso porque as percepções dos
níveis de consenso e dissenso em torno da necessidade ou não do banimento do
amianto não são mais os mesmos observados quando da edição da referida norma
geral.
Se, antes, tinha-se notícia dos possíveis riscos à saúde e ao meio ambiente
ocasionados pela utilização da crisotila, falando-se naquela época na possibilidade do uso controlado dessa
substância, hoje, o que se observa é um
consenso em torno da natureza altamente cancerígena do mineral e da
inviabilidade de seu uso de forma efetivamente segura, sendo esse o entendimento oficial dos órgãos nacionais e
internacionais que detêm autoridade no tema da saúde em geral e da saúde do trabalhador.
Cheguei a esta
conclusão após a realização de audiência pública, em 24 de agosto de 2012,
convocada pelo eminente Ministro Marco
Aurélio, na qual foram ouvidos representantes de entidades governamentais,
de órgãos internacionais e da sociedade civil acerca dos aspectos científicos
da matéria-prima e de suas repercussões para o meio ambiente, a saúde pública e
a economia.
Quando
Advogado-Geral da União, proferi parecer no sentido da constitucionalidade da
Lei federal nº 9.055/95 (ADI 4.066) e pela inconstitucionalidade formal da Lei
nº 3.579, de 7 de junho de 2001, do Estado do Rio de Janeiro, que dispõe sobre
a substituição progressiva da produção e da comercialização de produtos que
contenham asbesto.
No entanto, a realização da referida audiência pública elevou o debate sobre a
questão no Tribunal a outro patamar. Com efeito, a abordagem do tema sob
diferentes perspectivas desvelou uma nova ordem de fatores a serem considerados
no julgamento deste caso. Dentre
eles, sobressai o fato de estarmos diante de um tema de natureza técnico-
científica, cuja compreensão e tratamento jurídico-normativo dependem do estágio do desenvolvimento
científico em que se encontre o observador.
Com relação a esse aspecto, rememoro que, ao proferir voto no RE, com repercussão
geral, nº 627.189 (DJe de 3/4/17), assinalei que a caracterização do que é seguro ou não à saúde depende do avanço do
conhecimento científico acerca da questão. No recurso, questionava-se
acórdão que deixara de aplicar a norma nacional (Lei nº 11.934/2009) relativa
aos limites de exposição humana ao campo eletromagnético das linhas de
transmissão de energia elétrica, fixando, no caso concreto, patamar abaixo do
previsto na lei nacional. Na ocasião, observei que não havia evidências científicas suficientes de que o patamar fixado na
legislação nacional – que corresponde ao valor recomendado pela Organização
Mundial de Saúde – causasse efeitos
adversos à saúde.
Adoto, aqui, a
mesma premissa empregada no referido recurso extraordinário, para chegar, no
entanto, a conclusão diversa.
No caso, deve-se considerar o avanço
do conhecimento científico acerca dos efeitos do amianto à saúde e ao meio
ambiente, havendo, quanto a esse aspecto, repita-se,
consenso científico dos órgãos de proteção à saúde acerca da natureza altamente
cancerígena do referido mineral, o qual aponta para a impossibilidade de seu
uso seguro.
Conforme assinalou o representante do
Ministério da Saúde na audiência pública, todas
as modalidades do amianto são classificadas pela Agência Internacional para a Pesquisa sobre o Câncer (IARC), da
Organização Mundial da Saúde (OMS), como comprovadamente carcinogênicas para os seres humanos (fl. 9
das transcrições da audiência pública). Também ressaltou-se que, de acordo com a OMS, não há possibilidade
de uso seguro da fibra, pois não há níveis de utilização nos quais o risco de
câncer esteja ausente, e a única forma eficaz para eliminar as doenças
relacionadas com essas fibras minerais é o abandono da utilização de todas
as espécies de amianto.
Segundo o
estudo Eliminação das enfermidades
relacionadas com o
amianto, produzido pela OMS, o amianto é um dos cancerígenos ocupacionais mais
importantes, causando aproximadamente metade
das mortes por câncer ocupacional no mundo (Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/69481/1/WHO_SDE_OEH_06.03
_spa.pdf.)
No Brasil, de acordo com os dados trazidos pelo Ministério da Saúde, o amianto é responsável por 1/3 (um terço)
dos casos de cânceres ocupacionais e 80% das pessoas morrem em um ano após do diagnóstico (fl. 11). O órgão também
registra a ascensão do número de
cânceres relacionados ao amianto em suas bases de dados, desenhando- se, a
partir disso, grave problema de saúde
pública (fl. 15).
Ressalta-se que, em outubro de 2014,
foi publicada a Portaria
Interministerial nº 09, dos Ministérios da Previdência Social, do Trabalho e
Emprego e da Saúde, que contém, em anexo, a Lista Nacional de Agentes Cancerígenos para Humanos (LINACH). O
rol foi dividido em três grupos: Grupo 1, de substâncias cuja natureza
carcinogênica para humanos está confirmada; Grupo 2, daquelas provavelmente
carcinogênicos para humanos; e Grupo 3, aquelas possivelmente carcinogênicos
para humanos. O amianto, em todas as
suas formas, inclusive a crisotila, figura no Grupo 1 (substâncias
cuja natureza carcinogênica para humanos está confirmada).
O alto risco cancerígeno do amianto está refletido na própria legislação
previdenciária brasileira. O representante do Ministério
da Previdência Social, na audiência pública, observou que o tempo de aposentadoria especial no caso de exposição aos asbestos é
de 20 (vinte) anos (item 1.02 do Anexo IV do Decreto nº 3048/1999), sendo que, para todos os demais itens da
lista de agentes químicos nocivos (item 1.0.0), o
período é de 25 (vinte e cinco) anos. O decreto prevê período idêntico
somente em uma hipótese, de exposição a agentes físicos, químicos e biológicos
associados, em “mineração subterrânea cujas atividades sejam exercidas
afastadas das frentes de produção” (4.0.1).
O representante do MPS também
assinalou que assim está posto na legislação pelo fato de que o trabalhador exposto ao amianto, de fato, se
aposenta mais cedo, como consequência da sua situação de
morbidade acelerada, além do alto percentual de requerimento de
auxílio-doença e aposentadoria por invalidez em razão de moléstias
relacionadas ao amianto. Essa situação de morbidade acelerada e de alto grau de
incapacidade onera sobremaneira o sistema previdenciário.
Do ponto de vista da possibilidade de
dano ambiental, a representante do Ministério do Meio Ambiente concluiu sua
fala na audiência pública assinalando a convicção
acerca da necessidade de se promover a substituição do amianto por materiais
alternativos, tendo em vista a necessidade
de se reduzir o risco de exposição ao mineral.
Chamou a atenção, ademais, para o
fato de que as características do
amianto e a forma como ele se comporta na natureza, que fazem com que exista
uma grande rede de exposição à fibra, elevam o risco de contaminação, conforme
se observa no seguinte trecho da explanação:
“Destaca-se que a possibilidade de
uso do amianto caracteriza um uso
dispersivo, ou seja, ele tem um destino, ele tem uma possibilidade de uma utilização bastante ampla que faz com
que ele se espalhe. O produto
do amianto chega a diversos ambientes, locais, usuários. A maioria dos profissionais e usuários que
entram em contato com esses produtos, muitas vezes, nem sabe da existência do
amianto nesse produto, o que faz com que eles tenham uma certa
despreocupação em lidar com ele.
(…)
Como o amianto se comporta no meio
ambiente? Todos os tipos de amianto têm, praticamente, o mesmo comportamento,
independente de qual forma de fibra. Todos eles têm uma fácil mobilidade por escoamento, ou seja, ele não penetra no
solo, eles ficam na superfície, eles se
dispersam por erosão, por dispersão de fibra, não possui, como lixiviar -
como nós falamos
- uma penetração no solo; o movimento das fibras só ocorre por
escoamento.
Quando ele se deposita no ambiente
aquático, na superfície, também não há estudos muito claros sobre como eles
se dispersam daquele ambiente. Ele não é biodegradável, ou seja, não existe nenhum micro-organismo que tenha
condição de quebrar, de destruir, de transformar essa fibra de alguma forma.
É importante nós colocarmos que, quando nós temos produtos químicos
utilizados no meio ambiente, geralmente, observamos a capacidade de algum
micro-organismo transformá-lo em alguma outra molécula mais simples que possa
ser, de certa forma, diminuída sua toxicidade. No caso do amianto, nós não
temos essa situação. Então, ele não é degradado por mecanismos aquáticos e ele
permanece na mesma forma como é colocado.
Do ponto de vista, ainda continuando, do comportamento ambiental dele, ele não possui nenhuma afinidade por matéria
orgânica ou inorgânica, ou seja, no momento que se coloca, não existe nenhuma
possibilidade de esse material ser incorporado a alguma estrutura orgânica e
faça com que ele permaneça mais imóvel, que ele permaneça - vamos dizer assim -
isolado da questão ambiental. Ele
permanece como ele mesmo por todo o tempo. Então, nós dizemos que
ele não absorve as partículas do solo, ele não se absorve a nenhum outro
componente do solo, ele não tem essa afinidade. Alguns têm algumas afinidades
com "metais traços", compostos orgânicos. É bastante difícil
encontrar isso, mas, de forma geral, o comportamento dele é dessa forma.
Ele não bioconcentra. Bioconcentra é
quando você tem um produto químico ou um composto, onde ele tem a possibilidade
de se incorporar e vai se aumentando
a concentração. E também você biomagnifica, passa para outras gerações. No caso
do amianto, não. Ele se deposita, ele
é absorvido e ele permanece no próprio ambiente. Um exemplo que nós
temos claro, os agrotóxicos, que já foram proibidos; DDT, por exemplo, vai passando pela cadeia. No caso do amianto,
não acontece, mas ele tem a capacidade de ser absorvido pelo organismo, na forma como foi colocado pelo Ministério da Saúde.
(…)
Devido a esse comportamento ambiental do amianto
e também o uso dele, nós temos o que chamamos de rede de exposição. Essa
rede de exposição inclui fibras na extração do minério, fibras na roupa de
trabalho, comunidades de entorno de minas, fibra dos laminadores nas fábricas;
nós temos refugos de laminação de fábrica, transporte de fibra - quando você
faz o transporte da própria fibra já produzida -, trabalhadores que instalam,
reparam, removem materiais com amianto, contato com produtos desgastados ou quebrados
e, de certa forma, obviamente, o próprio descarte do resíduo” (fls. 23/29).
Ainda sob esse
aspecto, segundo a representante da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de
São Paulo, só naquele Estado são gerados
50.0
(cinquenta mil) toneladas de resíduos de amianto por ano, havendo poucos aterros aptos a tratar esses resíduos, em razão dos custos
elevados para sua implementação e operação, o que expõe a população em geral a riscos.
Nesse ponto, é
importante destacar que o Brasil está entre os cinco maiores produtores mundiais de amianto, que é utilizado em
sua esmagadora maioria na indústria de cimento-amianto ou fibrocimento (telhas,
caixas d'água etc). A única mina de
extração de amianto crisotila ainda em operação no Brasil é a mina de Cana Brava,
localizada no município de Minaçu, em Goiás.
Ressalte-se
que a Lei nº 9.055 foi editada, em
1995, com base em um prognóstico de viabilidade do uso seguro da crisotila e
na impossibilidade, na época, de se substituir a variedade crisotila por
material alternativo.
No entanto, além de ter-se
verificado, com o passar o tempo, que não há, do ponto de vista técnico, formas
de uso seguro da crisotila, a prática
tem demonstrado uma grande resistência das empresas em observarem as regras de
proteção estabelecidas pela legislação.
A questão se
reflete na casuística judicial brasileira. Por exemplo, em março de 2017, a
empresa que é considerada a maior fabricante
nacional
de telhas, caixas d’águas, dentre outros
produtos compostos de fibrocimento, foi condenada, em primeira instância, pela
Justiça do Trabalho do Rio de Janeiro a substituir o amianto por
matérias-primas alternativas na fabricação de seus produtos, no prazo de 18
meses. A condenação se deu nos autos de ação civil pública ajuizada pelo
Ministério Público do Trabalho, a partir de inquérito civil instaurado em 2008,
em que se atestou que a empresa
desobedecia sistematicamente as normas de segurança aplicáveis (fonte: http://istoe.com.br/eternit-justica-
do-trabalho-determina-substituicao-do-amianto-em-fabrica-no-rio/).
O descaso parece
não ser exclusividade das empresas brasileiras. De fato, o representante da Organização
Internacional do Trabalho na
audiência pública assinalou a impossibilidade
do controle da exposição à crisotila nas diversas fases de seu ciclo.
Destacou, nesse sentido, que “[a]s medidas de higiene restringem-se tão somente
ao ambiente de trabalho de grandes empresas, responsáveis por uma parcela
ínfima da população exposta ao amianto” (fl. 305 das transcrições).
A essa ordem de fatores soma-se o
fato de que a Convenção nº 162 da Organização Internacional do Trabalho, de junho de 1986 – internalizada
pelo Brasil mediante o Decreto nº 126, de 22 de maio de 1991, prevê, dentre seus princípios gerais, a
necessidade de revisão da legislação nacional sempre que o desenvolvimento
técnico e o progresso no conhecimento científico o requeiram. É
exatamente isso que dispõe o parágrafo 2 do art. 3º da Convenção:
ARTIGO 3º
“1 - A legislação nacional deve
prescrever as medidas a serem tomadas para prevenir e controlar os riscos, para
a saúde, oriundos da exposição
profissional ao amianto, bem como para proteger os trabalhadores contra tais riscos.
2 – A legislação nacional, adotada em virtude da aplicação do parágrafo 1
do presente Artigo, deverá ser submetida a revisão periódica, à luz do
desenvolvimento técnico e do aumento do conhecimento científico”.
Nessa
esteira, o § 2 do art. 15 determina
a revisão e a atualização dos limites de exposição ou de outros critérios de
exposição ao amianto, à luz do desenvolvimento tecnológico e do aumento do
desenvolvimento técnico e científico, in verbis:
ARTIGO 15
“1 - A autoridade competente deverá
fixar os limites da exposição dos trabalhadores ao amianto ou de outros tipos
de critérios de avaliação do local de trabalho em termos de exposição ao
amianto.
2 - Os limites de exposição ou outros critérios de exposição deverão ser
fixados, revistos e atualizados periodicamente, à luz do desenvolvimento
tecnológico e do aumento do conhecimento técnico e científico.”
Dentro desta mesma lógica, o art. 10 da convenção determina a substituição
do amianto por material menos danoso ou mesmo seu efetivo banimento, sempre
que isso se revelar necessário e for tecnicamente viável. É
o que dispõe o art. 10 da convenção:
ARTIGO 10
“Quando necessárias para proteger a saúde dos trabalhadores, e viáveis do ponto de vista técnico, as
seguintes medidas deverão ser previstas pela legislação nacional:
a)
sempre que possível, a substituição do amianto ou de certos
tipos de amianto ou de certos produtos que contenham amianto por outros
materiais ou produtos, ou, então, o uso de tecnologias alternativas desde que
submetidas à avaliação científica pela autoridade competente e definidas como
inofensivas ou menos perigosas.
b)
a proibição total ou parcial do uso do amianto ou de certos tipos de
amianto ou de certos produtos que contenham amianto para certos tipos de trabalho”.
Sendo assim,
observa-se que
o Brasil assumiu
o compromisso
internacional de revisar sua legislação e de substituir, quando tecnicamente viável, a utilização do
amianto crisotila.
Nota-se, então, que, embora se reconheça que a Convenção nº 162, de 4 de junho de 1986, da Organização
Internacional do Trabalho, de fato,
não vede a utilização do amianto na modalidade crisotila, seu texto traduz um grande compromisso internacional não com a
manutenção do emprego da fibra de
forma controlada – como querem sugerir os que negam o banimento –, e sim
com a saúde dos trabalhadores, havendo vários preceitos que determinam a
alteração da legislação nacional sobre a matéria com o fito de torná-la a mais
protetiva possível, considerando o estágio do desenvolvimento científico
sobre o tema.
Destaca-se que, na esteira da
Convenção nº 162 da OIT, a Comissão das
Comunidades Europeias, em 1999, proibiu o uso remanescente do amianto
crisotila, passando a vigorar a proibição a partir de janeiro de 2005 (Anexo
I à Diretriz 769/69 EEC).
Na atualidade,
mais de 66 (sessenta e seis) países já baniram o uso de qualquer espécie de amianto. Assim o fez Austrália, Reino
Unido e Japão, entre outros. Na América do Sul, além da Argentina, o Chile e o
Uruguai também proibiram totalmente o uso e a comercialização de todas as
formas de amianto em seus territórios.
Nessa esteira, na 95ª Sessão da
Conferência Internacional, ocorrida em 2006, a Organização Internacional do
Trabalho estipulou que a eliminação
do uso de todas as formas de amianto e a identificação dos procedimentos
adequados para sua eliminação constituem os meios mais eficazes para proteger
os trabalhadores e evitar o surgimento de doenças.
Na ocasião, também se afirmou que a Convenção OIT nº 162/1986 não pode ser
utilizada como argumento em favor da continuidade da utilização do amianto,
conforme também salientou a representante da Organização Internacional do
Trabalho na audiência pública (fl. 301 das transcrições).
Esse pano de
fundo normativo internacional também conta com a Convenção sobre o Câncer
Ocupacional nº 139, da OIT, de 1974, ratificada
pelo Brasil, que obriga os países signatários a
procurar, por todos os meios, substituir
as substâncias e agentes cancerígenos a que estejam expostos os trabalhadores
por substâncias ou agentes não cancerígenos ou por substâncias menos nocivas.
Ressalte-se que a Lei federal nº
9.055/95, em seu art. 3º, manteve a vigência das atuais normas relativas ao
asbesto/amianto da variedade crisotila contidas “nos acordos internacionais
ratificados pela República Federativa do Brasil”, o que inclui o compromisso assumido com a ratificação da
Convenção 162 da OIT de abolir o uso do amianto tão logo seja possível sua
substituição por outro material menos nocivo.
Quando da edição da Lei federal, o país não
dispunha de produto qualificado para substituir o amianto crisotila. No
entanto, hoje já existem materiais alternativos.
Além de ser importado desde 2003, o PVA, por exemplo, passou a ser
produzido no Brasil a partir de matéria-prima nacional, o fio de polipropileno,
possibilitando a substituição da crisotila.
Ressalte-se que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA) e o Ministério da Saúde já recomendaram a substituição do amianto
pelas fibras de poliálcool vinílico (PVA) ou de polipropileno (PP),
conforme Nota Técnica elaborada por Grupo de Trabalho dessa autarquia federal
(fl. 1068), in verbis:
“A fibra de amianto vem sendo substituída
gradativamente na indústria brasileira. No setor de fibrocimento a opção
tem sido a utilização de fibras de poliálcool vinílico (PVA) e polipropileno (PP), juntamente com fibras de celulose.
As fibras de PVA e PP estão
sendo utilizadas em diversas partes do mundo e encontram-se, no atual estado de
conhecimento, classificadas como grupo 3 (não é classificável como sendo
carcinogênico para humanos) pela Agência Internacional para Pesquisa do
Câncer (IARC – International Agency for Research on Câncer vinculada a
Organização Mundial da Saúde). Estas
fibras têm sido utilizadas há décadas
em outras aplicações, como na indústria têxtil. As fibras de PVA particularmente
têm sido utilizadas em diversos países da Europa na produção de fibrocimento há
mais de 15 anos.
(...)
Após a avaliação das fibras de PVA e
PP, o Ministério da Saúde, atendendo o art. 6º do DECRETO Nº 2.350, de 15 de
outubro de 1997 que regulamenta a LEI Nº 9.055, de 1º de junho de 1995,
conclui:
pela recomendação da utilização das fibras da PVA e PP, nas dimensões
aqui descritas, na produção de fibrocimento”
(grifos nossos).
A Dra. Simone Alves do Santos, que,
na audiência pública, representou a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo,
chamou a atenção para o fato de que, das
19 (dezenove) indústrias que usavam o amianto em seus processos produtivos em
2008, 17 (dezessete) o substituíram por outras substâncias na fabricação de
seus produtos (as duas indústrias que não fizeram a substituição obtiveram
liminar na Justiça).
Assim, com o
advento dos materiais substitutos, hoje
já recomendados pelo Ministério da Saúde e pela ANVISA, e em atendimento
aos compromissos internacionais de revisão periódica da legislação, a Lei
federal nº 9.055, de 1995 – que, desde então, não sofreu nenhuma atualização -,
deveria ter sido revista para banir progressivamente a utilização do asbesto na
variedade crisotila, ajustando-se ao estágio atual do consenso em torno dos
riscos envolvidos na utilização desse mineral.
Enfim, se em 1995, tolerava-se, sob certas
circunstâncias e condições, a utilização da crisotila, especialmente em razão
da inexistência naquele momento de substitutivos, atualmente, o consenso
científico é no sentido da impossibilidade técnica do uso seguro da crisotila e
da existência de substitutivo idôneo.
Esse conjunto de
fatores - quais sejam, (i) o consenso dos órgãos oficiais de saúde geral e de
saúde do trabalhador em torno da natureza
altamente cancerígena do amianto crisotila; (ii) a
existência de materiais alternativos à fibra de amianto e (iii) a ausência de
revisão da legislação federal, que já tem mais de 22 (vinte e dois anos) anos -
revela a inconstitucionalidade
superveniente (sob a óptica material) da Lei Federal nº 9.055/1995,
por ofensa, sobretudo, ao direito à saúde (art. 6º e 196, CF/88); ao dever
estatal de redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de
saúde, higiene e segurança (art. 7º, inciso XXII, CF/88); e à proteção do meio
ambiente (art. 225, CF/88).
III – CONCLUSÃO
Diante da invalidade da norma geral
federal, os estados-membros passam a ter competência legislativa plena sobre a
matéria, nos termos do art. 24, § 3º, da CF/88, até que sobrevenha eventual nova legislação federal acerca do tema.
Eis o que dispõem, em resumo, as leis questionadas:
-
ADI nº 3.357/RS - Lei nº 11.643/2001 do Estado
do Rio Grande do Sul – proíbe a produção e a comercialização de produtos à base
de amianto no âmbito daquele Estado-membro.
-
ADI nº 3.356/PE - Lei nº 12.589/2004 do Estado
de Pernambuco – proíbe a fabricação, o comércio e o uso de materiais, elementos
construtivos e equipamentos constituídos por amianto ou asbesto em qualquer
atividade no âmbito do estado, especialmente na construção civil, pública ou privada.
-
ADI nº 3.937 - Lei nº 12.684/2007 do Estado
de São Paulo – proíbe o uso, no
âmbito daquele Estado, de produtos, materiais ou artefatos que contenham
quaisquer tipos de amianto ou asbesto.
Como as
referidas leis estaduais proíbem a utilização do amianto crisotila nas
atividades que mencionam, em consonância com os preceitos constitucionais (em
especial, os arts. 6º, art. 7º, inciso XXII, 196 e 225, CF/88) e
com os compromissos
internacionais subscritos pelo
Estado
brasileiro, entendo que não incidem elas no mesmo vício de
inconstitucionalidade material da legislação
federal.
No caso da ADPF 109, o ponto central é que a Lei
municipal nº 13.113/2001 proíbe a utilização de amianto em construções civis no âmbito do Município de São Paulo.
Assim, diante i)
da convergência entre a lei municipal e a legislação estadual – na época, a Lei
nº 10.813/2001 e, atualmente, a Lei nº 12.684/2007 -, uma vez que ambas proíbem
a utilização de quaisquer tipos de amianto; e ii) da competência dos municípios
contida no art. 30, incisos I, II e
VIII, da Constituição Federal para tratar de interesse local, são constitucionais a Lei municipal nº 13.113/2001
e o Decreto nº 41.788, de 13 de março de 2002, que a regulamenta.
Pelo
exposto, declaro, incidentalmente,
a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei Federal nº 9.055/1995 e julgo, por isso, improcedentes as ADI nºs 3.356,
nº 3.357 e nº 3.937 e a ADPF nº 109, de modo a se declarar a
constitucionalidade formal e material das leis questionadas.
É como voto.
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