quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

PORTA-AVIÕES SÃO PAULO SERÁ LEILOADO PARA DESMANCHE SEM TER SIDO DESAMIANTIZADO

 


                                                      
         

 

                                                                                              Bruxelas, 9 de Fevereiro de 2021.

 

 

Ao Ministério da Defesa

Esplanada dos Ministérios Bl. Q

Brasília - DF - CEP: 70049-900 - Brasil

c/c:  Ministério do Meio Ambiente


                    Ref:  Leilão público do porta-aviões São Paulo

 

 

Exmo. Sr.  Ministro Fernando Azevedo e Silva,

 

 

 

Chegou ao nosso conhecimento que o porta-aviões São Paulo / Foch (A-12) passará por um novo processo de leilão, após a primeira tentativa de venda não ter ocorrido em outubro de 2.020. De acordo com a Nota Pública n°. 67/2020, o processo de pré-credenciamento foi recentemente finalizado, com três empresas atendendo aos requisitos previstos no edital.

 

Por ser a França a proprietária original do navio, a cláusula contratual de venda do São Paulo dá às autoridades francesas a última palavra sobre onde o porta-aviões pode ser desmantelado. A França já lhes comunicou que apenas os estaleiros de reciclagem de navios aprovados e incluídos na Lista da União Europeia estão autorizados a participar da licitação. Embora a decisão da França tenha sido seguida pelo Brasil durante o leilão malsucedido anteriormente, parece que este não é o caso do atual processo de leilão. Nem todas as empresas concorrentes acreditadas estão incluídas na lista da União Europeia de instalações aprovadas de reciclagem de navios. Em particular, estamos preocupados que a Aratu Serviços Marítimos esteja representando os interesses de um estaleiro localizado nas praias do sul da Ásia. Aratu, durante o processo do ano passado, foi a representante do estaleiro naval indiano JRD.

 

Nas praias de Alang, Chattogram e Gadani, no sul da Ásia, é impossível conter a poluição, inclusive de metais pesados ​​e resíduos de óleo, pois não há estruturas e pisos impermeáveis nas zonas primárias de corte. Além disso, o porta-aviões São Paulo contém grandes quantidades de amianto que precisam ser manuseadas e descartadas sem expor ao risco de câncer os trabalhadores e as comunidades vizinhas. A falta de equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados, ao longo da praia, onde os navios ficam encalhados, bem como a falta de capacidade adequada de gerenciamento de resíduos à jusante, é motivo de grande preocupação. A falta de equipamentos de emergência e instalações hospitalares, que, em caso de acidente durante o processo de desmanche, são necessárias, é inaceitável.

 

Permitir a exportação do porta-aviões São Paulo para as praias do sul da Ásia constituirá uma violação do direito internacional. O Brasil é signatário da Convenção da Basileia sobre o “Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito”, a qual foi promulgada pelo Decreto nº.  875 de 19/7/1993[1] sob a qual estão regulamentados o amianto e vários outros materiais perigosos contidos na estrutura do São Paulo.

 

Observamos que a Convenção da Basileia afirma expressamente que: “Para os fins desta Convenção, qualquer movimento transfronteiriço de resíduos perigosos ou de outros rejeitos: [...] (c) com o consentimento de Estados obtido por meio de falsificação, descrição enganosa ou fraude; ou […] (e) que resulte num depósito deliberado (por exemplo, “dumping”) de resíduos perigosos ou de outros resíduos, caracterizando violação da presente Convenção e de princípios gerais do direito internacional, será considerado tráfico ilegal.”, sic.

 

Além disso: “No caso de um movimento transfronteiriço de resíduos perigosos ou outros resíduos considerado tráfico ilegal em função da conduta do exportador ou gerador, o Estado de exportação deverá assegurar que os resíduos em questão sejam: (a) levados de volta pelo exportador ou pelo gerador ou, se necessário, pelo próprio Estado para dentro de se (sic) território ou, se isto for impraticável, (b) depositados de alguma outra forma de acordo com os dispositivos da presente Convenção, em um prazo de 30 dias a contar da data em que o Estado de exportação foi informado do tráfico ilegal ou em qualquer outro prazo acordado entre os Estados interessados. Para esse fim, as Partes interessadas não deverão se opor, dificultar ou impedir o retorno desses resíduos para o Estado de exportação.” (Artigo 9.2), sic.

 

Entre as obrigações exigidas pela Convenção da Basiléia, está o requisito da notificação e consentimento de todos os países importadores e de trânsito, que deve incluir uma caracterização completa das quantidades e tipos de materiais perigosos a bordo (Artigo 6). Este inventário é um pré-requisito para qualquer movimentação posterior.

 

Além disso, a Convenção exige que nenhuma exportação seja feita se houver motivos para acreditar que as instalações de reciclagem ou de gerenciamento dos resíduos empregado não se constituam numa gestão ambientalmente correta nos termos da Convenção. Os estaleiros de desmanche de navios que operam nas praias sujeitas às marés no sul da Ásia são bem conhecidos por suas práticas perigosas e poluentes.[2]

 

Com base nas informações prestadas, rogamos, portanto, ao Brasil que garanta que o São Paulo não acabe em uma praia do sul da Ásia para desmanche e que seja reciclado ou convertido com segurança num estaleiro aprovado pela União Europeia, como previamente requerido pela França. É bastante sabido - e bem-vindo em todo o mundo - que o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu em novembro de 2017 a mineração, fabricação, transporte e todos os usos da crisotila (amianto branco) em nível nacional. Exportar amianto ou produtos que o contenham, como o porta-aviões São Paulo, para sociedades mais vulneráveis socioambientalmente seria imoral e condenado como um duplo padrão e uma injustiça ambiental. Caso São Paulo se dirija ao sul da Ásia para demolição, o Brasil pode estar sujeito aos mesmos protestos públicos que a França sofreu quando tentou desmantelar o navio irmão do São Paulo, o Clemenceau, na Índia.  Uma ação legal forçou a França a trazer o Clemenceau de volta à Europa para reciclagem segura.

 

Permanecemos à disposição para assisti-los naquilo que for necessário sobre esse assunto, e solicitamos gentilmente que V. Excias. nos mantenham informados sobre quais ações pretendem adotar para garantir que o porta-aviões São Paulo não termine prejudicando trabalhadores, comunidades locais e ambientes costeiros sensíveis no sul da Ásia.

 

 

                                                                             Com as nossas cordiais saudações,

 




           

       Ingvild Jenssen                                                              Fernanda Giannasi

     Diretor Executivo                                          Assessora para Saúde e Meio Ambiente

NGO Shipbreaking Platform                                                ABREA

 

 

 

 

Em nome dos membros da ONG Shipbreaking Platform (Plataforma de Desmanche de Navios):

Basel Action Network (ban)

BAN Asbestos France

International Ban Asbestos Secretariat (IBAS)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tradução do documento original em inglês: Fernanda Giannasi/ABREA



[1]https://www.icmbio.gov.br/cepsul/images/stories/legislacao/Decretos/1993/dec_875_1993_convencaobasileia_residuospeigosos.pdf

[2] Pesquisadores e jornalistas que visitaram recentemente os estaleiros indianos de demolição de navios, muitas vezes sem aviso prévio e disfarçados, documentaram uma realidade que contrasta fortemente com os esforços da indústria de promover o chamado greenwashing (“lavagem verde”, que é uma maneira de maquiar irregularidades do ponto de vista ambiental) nas praias. Em 2016, DanWatch revelou as condições terríveis em um canteiro naval que a Maersk e a ClassNK aprovaram como seguro e ambientalmente correto (https://old.danwatch.dk/en/undersogelse/maersk-and-the-hazardous-waste/). Mais recentemente, a TV francesa (https://www.francetvinfo.fr/economie/transports/chantiers-navals-de-saint-nazaire/inde-des-chantiers-navals-de-demolition-qui-font-scandale_3505729.html), a BBC britânica (https://www.bbc.co.uk/news/extra/ao726ind7u/shipbreaking), o programa holandês ZEMBLA (https://www.youtube.com/watch?v=CaxkaxW8uUE&t=9s) e a TV islandesa (https://www.ruv.is/kveikur/where-ships-go-to-die/) trouxeram relatos terríveis das atividades de demolição dos navios em Alang, na Índia.

 

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